É preciso ousar mudanças




É PRECISO OUSAR MUDANÇAS

Michèle Sato tem licenciatura em Biologia, mestrado em Filosofia, doutorado em Ciências e pós-doutorado em Educação. A diversidade em sua formação acadêmica tem contribuído para que ela lance um olhar aguçado sobre as questões ambientais, principal foco de seu trabalho.

Atualmente, é professora do Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e líder do Grupo Pesquisador em Educação Ambiental, Comunicação e Arte (GPEA). Também participa da comissão nacional da Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (DHESCA) na relatoria de meio ambiente. “Partimos do pressuposto de que, toda vez em que há um crime ambiental, há também um crime social, e as agressões ambientais causam maiores impactos nas camadas mais pobres ou nos grupos sociais vulneráveis”, explica. “Para além de direitos humanos, é preciso considerar a destruição da vida não humana e todo o suporte da natureza. Assim, a escola precisa fazer emergir a importância dos Direitos Humanos e da Terra, debater a temática, rever sua função social, enxergar para além dos seus problemas intrínsecos e envolver-se nos dilemas da sociedade”, afirma.

Leia a entrevista concedida à Pátio Ensino Fundamental.
Termos como “sustentável” e “sustentabilidade” são hoje repetidos à exaustão, embora muitas pessoas desconheçam seu real sentido e este acabe perdendo-se ou sendo interpretado de maneira equivocada e reducionista. Como a senhora define sustentabilidade?
O termo sustentabilidade parece ter sido banalizado não apenas porque é repetido à exaustão, mas porque é repetido por um grupo grande de pessoas das mais diversificadas áreas do conhecimento ou de atuação. Perdeu-se, assim, a identidade de quem está referendando o termo, já que se tornou um “jargão” pasteurizado em todas as áreas. Tecnicamente, a sustentabilidade é compreendida como algo durável que tenha a interface das três dimensões — economia, sociedade e ambiente —, mas acabou tornando-se um discurso vazio, porque as três dimensões estão apenas no nome, já que na prática muito pouco se concretiza. Pessoalmente, compreendo que a sustentabilidade deve incluir dois grandes destaques: a inclusão social e a proteção ecológica. A economia é subjacente a isso, assim como tantas outras essencialidades, como a educação, as ciências, a habitação, a espiritualidade e outras dimensões que chamamos de “qualidade de vida”.
 
Na maior parte das escolas, essa questão não fica muito clara. O que seria uma escola sustentável?
Uma escola sustentável almeja inclusão social com proteção ecológica. Alguns exemplos: um jogo de cores e luzes naturais no pátio da escola para que os surdos também possam cantar; uma exposição de cartuns ambientais em Braile para os deficientes visuais; rampas de madeira para os cadeirantes, em vez de concreto. E também uma bioarquitetura de aproveitamento das águas da chuva, conforto térmico, horta escolar ou trabalhos sobre a importância da alimentação livre de agrotóxicos. Trata-se de uma escola que sabe ouvir a comunidade e junto com ela elabora um projeto ambiental escolar comunitário, correspondente às identidades ali pulsantes: fenomenologicamente correspondente à realidade da escola, mas essencialmente estabelecendo um compromisso social e ambiental. Tem a organização de um currículo não mais hegemônico, e sim baseado no contexto de cada biorregião: educação indígena, quilombola, do campo e da cidade, entre tantas outras educações possíveis e dialogantes.
 
Há décadas se vem falando em ecologia, educação ambiental, sustentabilidade, mas percebe-se que os professores têm pouca informação. Além disso, tais questões ainda não são bem-trabalhadas no currículo das escolas. O que é necessário fazer para mudar esse quadro?
Há mais de mil anos falamos em matemática, geometria ou física, e não é verdade que tenhamos o sucesso dessas áreas nas escolas. A língua portuguesa, por exemplo, dispõe de uma enorme carga horária em relação às demais disciplinas, mas nem por isso as pessoas falam ou escrevem com gramática respeitável. A educação ambiental não é nenhuma ilha isolada em um continente educativo em crise sistêmica. Não é possível ser vencedor na educação ambiental se houver violência nas escolas e altos índices de evasão ou repetência. Existe um mosaico de tecido global na tessitura coletiva de pontos e nós, franjas e desenhos que conferem ligações entre pontos e linhas. Teremos de cuidar da escola — e basicamente da educação como um todo — se quisermos alcançar as mudanças desejadas. E, para isso, os pequenos pontos que a constituem devem trabalhar conjuntamente. Não há um ou outro culpado, nem uma ou outra área que seja bem-sucedida. O tecido educativo é o conjunto desses erros e acertos.
 
O que é preciso para que a escola seja formadora de cidadãos preocupados com a sustentabilidade do planeta?
É preciso mudar a sociedade, ver a escola em seu âmbito, acreditar mais nos jovens, ousar mudanças, rever posturas, frear consumos, mudar estilos de vida, aprender a ser solidários. Estamos falando em mudar o modo como fomos criados, abandonar hábitos tradicionais, inovar e ser capazes de caminhar em outra concepção de mundo. Isso demora um pouco, por mais que os educadores ambientais tenham pressa em salvar o planeta cada vez mais ameaçado, mas a violência socioambiental existe justamente porque adotamos esses modelos insustentáveis de vida.
 
Muitas escolas abordam pontualmente a sustentabilidade e a educação ambiental, ou seja, com atividades sobre o Dia da Árvore, o Dia da Água, a coleta seletiva de lixo, mas a sustentabilidade não está inserida em seu projeto político-pedagógico. As ações pontuais são válidas?
As ações pontuais são interessantes, algumas vezes, porque despertam interesse pelo tema e fomentam algum debate, por mais irrisório que possa parecer. O Dia da Árvore (21 de setembro) deste ano foi celebrado com milhares de fotografias compartilhadas no Facebook. Parece ser uma atitude tola, mas foi interessante ver tantas páginas com árvores diversas. Contudo, não sendo um processo educativo, isso tem um papel pequeno frente à profundidade das mudanças necessárias no mundo. Nosso perfil imediatista e talvez pragmático aceita essas ações porque são visíveis e rápidas, porém a guinada conceitual de mudança socioambiental é lenta. Cumpre sempre destacar, todavia, que há um movimento em marcha, com vistas a construir projetos político-pedagógicos que saiam de meras datas e se enraízem em propostas pedagógicas mais processuais. No futuro, todo dia será o dia das mulheres, dos índios ou do Zumbi!
 
Haveria exemplos de escolas que desenvolvem um trabalho voltado à sustentabilidade?
Conheci muitas na Inglaterra, onde surgiu o termo “escolas sustentáveis”. Inúmeras escolas realizam não só a coleta seletiva de lixo, mas também exposições de desenhos e pinturas, enfatizando a bioarquitetura e a alimentação orgânica. Há belas experiências no Canadá, com a mitologia indígena. Os rituais são reproduzidos nas escolas e as hortas seguem uma lógica indígena, que garante o que eles chamam de land education, ou seja, uma educação mais próxima da terra. No Quênia, para não citar apenas os países ricos, conheci algumas escolas rurais que faziam plantações em rotação de culturas. Aproveitavam tudo e dispunham de enormes contêineres para captação de águas da chuva. Havia também uma espécie de tubulação que aproveitava o vento para girar moinhos usados na secagem das sementes para a merenda escolar. Pela condição socioeconômica, a bioarquitetura era escassa, e a ênfase estava na alimentação sem agrotóxico. Há outras boas iniciativas que não carregam essa nomenclatura em todo o mundo, mas são poucas, infelizmente, como é o caso brasileiro.
 
Existe alguma experiência em nosso país que mereça ser citada?
Há algumas vivências boas aqui e acolá. Ainda que sejam poucas, observa-se um movimento em percurso, acenando a emergência das mudanças necessárias. A proposta brasileira de escolas sustentáveis veio da inspiração inglesa, quando a coordenadora geral de educação ambiental do MEC, Rachel Trajber, esteve lá visitando escolas. Em Mato Grosso, a universidade federal (UFMT) e a secretaria de educação (SEDUC) aliaram-se, e já começamos o processo de formação de professores e jovens que se associam em coletivos (COM-VIDAS). Uma parceria com o Fundo Mundial para a Natureza (WWF) está em planejamento, e pretendemos construir duas escolas maravilhosamente sustentáveis. Nosso objetivo será calcular a pegada ecológica do município de Cuiabá e iniciar um amplo processo educativo contra o consumo, uma vez superado o problema da fome — pegada ecológica é um indicador de qualidade de vida mais abrangente que o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que pode mensurar também o consumo individual Ainda estamos engatinhando nessas propostas, mas tenho esperanças de que teremos belas vivências ecopedagógicas na escola e fora dela.
 
Recentemente, o Brasil sediou a Rio+20. Como a senhora avalia os resultados desse evento?
Um retrocesso de 20 anos, uma “Rio menos 20”. Uma triste constatação de que a economia triunfou nos debates ambientalistas, trazendo a vã ilusão de que a natureza só pode ser vista por seu poder “recursista” de uso e acúmulo do capital. Foi um momento vergonhoso de constatação de que muito pouco foi feito em prol do ambiente pelos governantes, e não apenas do Brasil, mas do mundo todo. Temos testemunhado uma derrota após a outra: Belo Monte, transposição do rio São Francisco, aprovação do Código Florestal e tantas outras mazelas que assolam a natureza e as pessoas mais pobres, vulneráveis ou invisibilizadas de nossa sociedade patológica. É preciso mudar esses cenários para que o cuidado socioambiental seja possível.
 
O que a senhora diria aos professores que se preocupam com o presente e o futuro do planeta e querem dar sua contribuição, mas não sabem o que fazer?
Eu diria que não existe uma receita pronta a ser seguida, mas sim tentativas para mudanças. Que a escola não está isolada e que o sistema em crise precisa ser repensado à luz de uma complexidade de pontos e linhas que formam o tecido educativo. Que as pequenas ações realizadas somam-se e ecoam diferentemente em cada região. Um projeto, uma aula ou um debate ambiental podem parecer pequenos frente às atrocidades do mundo, mas tudo isso se magnifica quando consideramos a escola como centro de um universo local, articulada com a sociedade e com as mudanças, em vez de apenas aguardar passivamente pelas mudanças que a sociedade nos impõe. Também diria que existem inúmeras publicações, materiais, estratégias educativas e roteiros que oferecem diversas possibilidades para que a escola seja um espaço mais atuante e progressista no tocante às dimensões ambientais.
 
As escolas, assim como as indústrias, poderiam ser envolvidas nas discussões sobre os créditos de carbono?
Penso que a economia verde está enganando certos professores, tentando fazer parecer que os serviços ecossistêmicos são a grande solução do século XXI. Um dos grandes desafios educativos para o tratamento da mudança climática é que as pessoas não percebem o fenômeno climático com nitidez. Isso as desmobiliza, e algumas chegam inclusive a duvidar que a escassez da água seja um problema mundial. Por isso, a pesquisa torna-se importante na escola para que conduza alunos e professores a descobrir novos mundos, e não meramente reproduzir discursos. Depois da Rio92, o Brasil pautou a economia nos modelos de desenvolvimento. Houve retrocessos tremendos, não apenas ambientais, mas também sociais. Entrar na pauta dos créditos de carbono é meramente continuar uma política desenvolvimentista que só destruiu o planeta. É preciso ir além da economia!

www.sositaguare.blogspot.com

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