Canabis Sativa - maconha - usada na doença chamada CDKL5, desordem genética .
A polêmica não vem de hoje. Embora a humanidade conviva com a Cannabis sativa (nome científico da maconha) há milênios e centenas de estudos sobre suas propriedades já tenham sido publicados, o assunto continua tabu. Ainda que por lei estejam previstos o cultivo e o uso para fins medicinais e científicos, não há no país regulamentação para o uso medicinal da planta, e na prática não há regras claras para definir em que condições ela pode ser manipulada. Esse quadro mudou recentemente, quando o primeiro paciente brasileiro conseguiu uma liminar na justiça para importar e utilizar um medicamento derivado da maconha.
Anny Fischer tem 5 anos e uma doença chamada CDKL5, desordem genética rara que atinge apenas centenas de crianças no mundo e cuja principal característica é o aparecimento de convulsões desde os primeiros meses de vida — Anny tinha de 30 a 80 por semana. Nesses casos, as convulsões causam alterações no desenvolvimento neurológico e não melhoram mesmo quando a criança é medicada com o maior número possível de anticonvulsivantes — Anny chegou a tomar oito ao mesmo tempo. A maioria das crianças que tem a doença não consegue andar, falar ou sequer se alimentar; é como se ela fosse uma “boneca de pano”.
Canabidiol (CBD) é o nome da substância extraída da Cannabis sativa que mudou a vida de Anny e de seus pais, Katiele e Norberto. Segundo o psiquiatra e neurocientista José Alexandre Crippa, que é pesquisador do tema e acompanhou o caso da menina de perto, essa substância possui diversas propriedades benéficas comprovadas no tratamento de esquizofrenia, Parkinson, fobia social, transtorno do sono, diabetes tipo 2 e mesmo na cura da dependência de drogas. “O primeiro estudo brasileiro com o Canabidiol foi realizado entre as décadas de 1970 e 1980 e comprovou o seu efeito anticonvulsivante”, explica. Em alguns casos, o CBD tem os mesmos efeitos que medicamentos controlados, mas com a vantagem de não causar sedação nem vício. “Os efeitos nocivos do CBD são poucos e raramente descritos. Isso abre um leque gigantesco para o uso clínico.”
A substância é uma das mais de 50 ativas na planta e não tem efeito psicotrópico (não “dá barato”, ou seja, não provoca alterações da percepção em quem fuma). Basicamente, ao entrar na corrente sanguínea e chegar ao cérebro, ela “acalma” a atividade química e elétrica excessiva do órgão.
Como não é produzida nem comercializada no país, Katiele e Norberto resolveram trazer dos Estados Unidos, pela internet e com a ajuda de amigos, um extrato com 20% de Canabidiol em formato de pasta. Lá, o composto é considerado seguro pelo FDA (órgão que regula a comercialização de remédios no país), mas como não passou por testes clínicos, as empresas que o vendem não podem alegar propriedades medicinais e o comercializam como suplemento alimentar. Katiele aprendeu a usar o produto com um pai americano que descrevia a experiência de sua filha com o produto no Facebook.
Os resultados foram fantásticos: em um mês, Anny teve cerca de duas crises convulsivas, apenas.
A questão legal
Em umas dessas importações ilegais, o extrato foi retido nos Correios pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). O documentário “Ilegal”, dirigido pelo jornalista Tarso Araújo, conta a saga de Katiele para conseguir autorização da instituição para utilizar o produto, em uma verdadeira corrida contra o tempo, pois toda a melhora de Anny com o uso do Canabidiol corria o risco de ser em vão. Foi aí que a família obteve do juiz Bruno Apolinário, da 3ª Vara Federal de Brasília, uma liminar com autorização de importação e retirada do medicamento. A Anvisa ainda pode recorrer da decisão.
No entanto, a própria agência afirma, em nota, que “ainda que o Canabidiol esteja classificado como uma substância de uso proscrito, não há impedimento para que seja solicitado o registro de medicamento com a substância, o que será avaliado em relação a sua eficácia e segurança, caso ocorra. A importação de medicamentos sem registro no país é possível por meio de pedido excepcional de importação para uso pessoal”.
O exemplo
Gabriela Mendes vê no CBD uma esperança para o caso de sua filha, Marianna, 6 anos, que não tem diagnóstico definido, mas que sofre com as internações por conta de crises convulsivas (cerca de cinco por ano), asma, pneumonia e infecções urinárias. “O máximo que conseguimos ficar em casa [sem precisar ir a hospitais] foram 6 meses e três semanas devidamente comemorados”, conta.
Enquanto aguarda o resultado de um exame genético e depois de ter passado por altos e baixos, Mari toma quatro anticonvulsivantes: três nacionais e um importado, todos nas doses máximas para o peso dela, divididos em cinco horários ao longo do dia. “As crises ficam melhor controladas, mas ela não consegue se manter acordada para aproveitar a vida, sentir os beijinhos e carinhos e fazer as terapias”, diz Gabriela.
Mari não está utilizando o CBD porque precisa de recomendação médica para que possa justificar a importação da medicação à Anvisa, caso ela seja barrada pelo órgão durante o processo. “Quero muito experimentar. Acredito que o Canabidiol seja nossa esperança de mudar esse quadro. Quero poder pintar um quadro mais colorido e alegre pra minha filha. Ela merece!”
No entanto, o país ainda precisa avançar nos estudos que comprovem a eficácia da substância em outros casos e ultrapassar barreiras burocráticas imensas, já que o CBD não é produzido no Brasil, embora o país seja referência nas pesquisas com a substância. “Depois da repercussão do caso da Anny, outras famílias também querem dar o CBD para suas crianças, e isso é legítimo. O problema é que a medicação não tem suas composições comprovadas aqui no país. Não sabemos dizer exatamente em qual dose e em quais condições as pessoas podem usá-la”, afirma o doutor José Alexandre Crippa.
Além de outras famílias, o médico afirma que há grupos que são a favor do uso recreativo da maconha e que estão usando o tratamento médico de Anny como argumento para suas causas. “Quero deixar claro que sou totalmente a favor da legalização dos canabinoides, que são essas substâncias presentes na maconha, para uso medicinal. Mas sou contra o uso para efeito recreativo, que causa alterações cerebrais e pode desenvolver transtornos psiquiátricos graves.”
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