Um supermercado não-consumista é possível?
Roupa simples, cabelo curto e óculos de haste grossa. A britânica Kate Bull sabe que não preenche o estereótipo de uma CEO —nomeclatura moderna para o presidente de uma empresa. “Não preciso de terninho”, diverte-se a executiva, enquanto reabastece seu carro elétrico nos fundos do estabelecimento.
Kate divide seus dias entre planilhas, pallets com caixas de alimentos, caminhões de entrega e voluntários. Muitos voluntários. Ela é a CEO do The People’s Supermarket, ou Supermercado do Povo, uma minirrevolução silenciosa de modelo de negócios, que até o momento conta com uma loja em Holborn, no coração de Londres, embora já tenha inspirado outras iniciativas mundo afora.
Na inauguração da empreitada, dia 1º de junho de 2010, funcionava assim: o cliente tinha de pagar 25 libras (cerca de 75 reais) por ano para se associar ao supermercado. Se trabalhasse quatro horas por mês na loja, varrendo o chão, tirando o lixo, fazendo pão ou operando o caixa, ganharia 10% de desconto em todas as compras.
Em 24 horas, a loja tinha 100 associados. Hoje, 18 meses depois, são 1.100. E a sorridente Kate está particularmente feliz porque, há menos de uma semana, conseguiu dar um passo importante para o desenvolvimento do negócio: em vez de 10%, os membros passaram a receber 20% de desconto.
Com essa tesourada, os preços da maioria dos produtos ficam abaixo das principais redes varejistas da Grã-Bretanha, como Tesco, Asda e Sainsbury’s. O mercado trabalha com transparência, pagando em dia os 24 funcionários fixos e não obtém lucros.
A inspiração veio do modelo do Park Slope Food Cooperative, de Nova York, que opera com conceitos semelhantes. O investimento inicial na loja britânica foi de 175 mil libras, ou 535 mil reais. O faturamento de 2011 é de 1 milhão de libras, ou 2,9 milhões de dólares – um crescimento de 60% em relação ao ano passado.
Com esse conceito e esses números, The People’s Supermarket é um ímã de holofotes. No dia 11 de fevereiro deste ano, a loja recebeu a visita do premiê britânico David Cameron, cujo sonho, dizia na época da eleição, era construir uma Big Society, ou “Grande Sociedade” – o conservador vem estimulando o voluntariado para suprir os cortes com a política de austeridade.
O encontro com Cameron durou cerca de uma hora. Kate sorri quando pergunto se conseguiu algum apoio do governo. “Verbalmente, apenas verbalmente”, diz.
Segundo a última auditoria da loja, o Social Return on Investment, ou Retorno Social por Investimento do projeto tem proporção de 5 libras para uma. Ou seja, cada libra esterlina investida em um associado ou voluntário é revertida em 5 libras para a comunidade em ganhos sociais.
Economia social
A camiseta amarela do voluntário Jacob Pover, designer de 23 anos, leva a estampa do The People’s Supermarket. Ele opera o caixa, pesa frutas, varre, o que vier, isso num sábado à tarde. Tudo porque sente que é parte de uma comunidade criativa e atuante, dentro de uma sociedade de relações interpessoais vazias. ”Todos contribuem de alguma forma e se sentem em casa”, diz o designer Jacob Pover.
“Já trabalhei em um café desses de rede que os clientes não olhavam na minha cara, não sabiam meu nome. Aqui a diferença é enorme. Sou cumprimentado na rua por advogados que trabalham na região. Eles sabem quem eu sou, que faço parte do mercado que eles compram”, conta Pover, um dos funcionários fixos da loja.
Segundo ele, o reconhecimento pelo trabalho é o que estimula o voluntariado. “Gente que não tinha experiência, que surtou por problemas pessoais ou profissionais e até pessoas que sofreram algum tipo de abuso fazem parte do grupo. Todas contribuem de alguma forma e se sentem em casa”, afirma.
O clima é de pressão zero. Voluntários podem até agendar suas 4 horas de trabalho pela internet, mas nem sempre funciona assim. “O importante é aparecer para dar um oi que seja”, brinca Pover, que agora quer aplicar seus conhecimentos em design para valorizar os produtos da loja.
Naquele sábado, o garoto dividia expediente com John Batho, 34 anos, o gerente da “Cozinha do Povo”, que ocupa uma pequena área no canto do supermercado. Ele é um dos que aparecem com frequência para ajudar. Ex-jornalista de negócios, estressado e infeliz, optou pelo seu maior prazer: o de cozinhar.
Batho não precisou de experiência em restaurante para trabalhar na loja. Bastou querer aprender. Ele recebeu treinamento do chef midiático Arthur Potts-Dawson, um dos idealizadores do projeto – e, por que não citar?, sobrinho de Mick Jagger.
A batalha do ex-jornalista é contra o desperdício, uma das bandeiras do The People’s Supermarket. “Reaproveitamos frutas e legumes que poderiam ser jogados fora. Fazemos tortas, bolos e pratos de salada”, ressalta, após uma fornada de “mince pies”, as tradicionais tortinhas inglesas de Natal.
Aliás, ao contrário das redes varejistas, o mercado abre no dia 25 de dezembro porque alguns voluntários querem. “Tudo fecha em Londres no Natal. Mas nós estaremos abertos. Achamos que as pessoas têm direito de comprar uma cerveja ou um doce no dia. Podem vir beber com a gente”, avisa Jacob Pover.
O futuro é fracionar
Na geladeira da loja, as cervejas são locais, produzidas por microcervejarias no leste de Londres. Foi decisão de assembleia: queremos cervejas locais. Mas The People’s Supermarket não vende cigarros. Foi também decisão de assembleia: não venderemos cigarros porque, do outro lado da rua, tem um hospital. Os médicos louvaram a decisão.
Enquanto a assembleia de voluntários dá as cartas nas prateleiras, a CEO Kate Bull espera implantar no futuro o fracionamento de produtos, partindo cada vez mais para a venda a granel. “Em vez de um saco de açúcar, vamos vender uma xícara. Não queremos que você compre demais, como as cadeias fazem, com promoções de 3 pelo preço de 1. Queremos que você compre o suficiente”, conta, mirando uma possível expansão da loja.
Por enquanto, The People’s Supermarket continua no mesmo endereço, entre lojas de grife: Lamb’s Conduit Street, Holborn, centro de Londres. Se a ideia do fracionamento colar como diferencial das grandes redes, Kate prevê bastante trabalho pela frente. “Leva tempo, mas temos de ser fortes e ambiciosos”, define
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