O GOLPE NA CAPOEIRA


CNE articula golpe contra a capoeira! Reconhecimento como esporte é armadilha de regulamentação e controle
Por Paulo Magalhães (Treinel Sem Terra)

Uma bomba atingiu a comunidade da capoeira em plena ressaca de carnaval! Em notícia amplamente divulgada pelos meios de comunicação, o Conselho Nacional do Esporte (CNE), em sua primeira reunião de 2016, formalizaria a resolução de reconhecimento da capoeira e outras artes marciais como atividade esportiva. No texto, se destaca a fala do presidente do Conselho Federal de Educação Física (CONFEF), Jorge Steinhilber, ao afirmar: “A capoeira é esporte, tem competições, são atividades importantes para o condicionamento físico. Crianças, adultos e idosos praticam a mesma para diminuir a obesidade e, principalmente, são atividades que têm federações e confederação. Já tinha aprovação do Conselho, mas ainda não havia a publicação do Ministério do Esporte de uma resolução a esse respeito. Hoje a formalização se deu, até porque nos próprios Jogos Escolares existem a modalidade capoeira”.
Embora essa notícia tenha alegrado alguns capoeiristas incautos, por verem a possibilidade de se abrir mais um canal de recursos para a capoeira, denunciamos essa “formalização” como um grave ataque à capoeira, especialmente ás suas facetas reconhecidas como patrimônio imaterial brasileiro, a roda e o ofício de mestre.
Primeiro, precisamos entender o que é o CNE. Na página do Ministério dos Esportes, vemos que “é órgão colegiado de deliberação, normatização e assessoramento, diretamente vinculado ao Ministro de Estado do Esporte, e parte integrante do Sistema Brasileiro de Desporto”. Ou seja, enquanto conselho deliberativo, as resoluções aprovadas no CNE e publicadas em diário oficial têm força de lei.
Outro aspecto importante a observar é que este debate vem sendo feito desde 2008 às escondidas, sem nenhuma participação ou conhecimento da comunidade da capoeira! Em portaria de 5 de março de 2008 (publicada no dia seguinte no Diário Oficial), o Ministro do Esporte “decide constituir Comissão Especial no âmbito do Conselho Nacional de Esporte (CNE) para elaborar estudo sobre nuances, objetivos, finalidades e interfaces que envolvam a realização das manifestações de dança, capoeira e ioga, bem como o respectivo enquadramento nas atividades esportivas desenvolvidas e regulamentadas no País”. O Secretário-geral da Comissão é o presidente do Conselho Federal de Educação Física (CONFEF), Jorge Steinhilber. Há a participação de algumas entidades ligadas ao desporto, e nenhum diálogo aberto com as manifestações culturais acima relacionadas. Como o prazo previsto era de 120 dias, em 29 de dezembro outra portaria no DO substitui a anterior. Em 27 de outubro de 2011, o DO publicava um extrato de reunião do CNE, em que foi lido o “Parecer da Comissão Especial sobre o Estudo das manifestações dança, capoeira, ioga e artes marciais/ lutas”, decidindo pela “aprovação por unanimidade da matéria referente à capoeira e artes marciais/lutas” e promoção de um seminário para aprofundar a compreensão sobre dança e ioga. Ou seja, entenderam que era necessário ouvir a comunidade da dança e da ioga, e aprofundar o diálogo a partir da opinião desta comunidade. A resolução que reconhece a capoeira e as artes marciais como esporte data deste dia, e o CNE entendeu que não seria necessário realizar nenhum seminário nem ouvir a comunidade interessada no assunto! São pessoas sem nenhuma vivência nem conhecimento de capoeira, tomando decisões em nome dela sem ouvir os antigos mestres nem a comunidade organizada! Mas se a resolução foi aprovada em 2011, porque só agora tivemos conhecimento? As pistas estão nas próprias atas do CNE.
A ata da 28ª reunião ordinária do CNE, em 27/11/14 (publicada no DO de 20/05/2015) demonstra “a divergência de posicionamento entre duas Comissões deste Conselho, sendo elas a Comissão de Estudos Jurídicos Desportivos e a Comissão Especial do CNE de estudos sobre a dança, capoeira, ioga e artes marciais, onde uma chegou à conclusão que não caberia ao Estado reconhecer ou deixar de reconhecer qualquer modalidade esportiva, considerando que isso seria um fato social, natureza que não permite interferência do Estado, constitucionalmente. Essa conclusão foi firmada pela Comissão que congrega os principais nomes do Direito Desportivo atual. Portanto, é necessário que haja um alinhamento deste Conselho, antes que seja publicada essa deliberação. O Conselheiro Jorge Steinhilber solicitou que constasse em ata que o Ministério está usando um subterfúgio para desrespeitar uma decisão deste Conselho”.
Ou seja, as próprias autoridades desportivas eram contra essa resolução, que foi construída e articulada pelo próprio presidente do CONFEF! Seria oportuno relembrarmos as relações históricas entre essa entidade e a capoeira. O Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Educação Física foram criados através Lei nº 9696/1998, e logo iniciaram uma campanha agressiva para aprisionar todas as manifestações da cultura corporal, como Capoeira, Artes Marciais, Dança, Yoga, Pilates, dentre outros. O sistema CREF/CONFEF pretendia estabelecer que somente os professores de educação física pudessem dar aulas de capoeira, e lutaram com unhas e dentes para estabelecer este monopólio e reserva de mercado. Depois de muita batalha, os capoeiristas conseguiram ganhar na justiça o direito de exercer livremente sua arte, mas até hoje tramitam no congresso nacional projetos de lei que tentam subordinar a capoeira à educação física. Não é de se estranhar que, em uma sociedade que preza pela democracia, uma instituição não estimule a troca de poder em sua gestão? Não há alternância de poder no CONFEF. O senhor Jorge Steinhilber é o presidente do Conselho desde sua fundação, é o chefe dos capitães do mato que sempre lutaram para escravizar a capoeira! Estaria agora fazendo algo ao nosso favor? Lógico que não!
Seria oportuno lembrar que a Confederação Brasileira de Capoeira (CBC) manteve relações íntimas com o CONFEF, e que seu fundador, Sérgio Vieira, fez parte da gestão do Conselho Regional de Educação Física do Estado de São Paulo (CREF/SP) nas funções de diretor, primeiro-secretário e conselheiro. No início a CBC apoiava as investidas do CONFEF sobre a capoeira, mas em certo momento decidiu mudar de estratégia. Desde a década de 90 a CBC tenta regulamentar a capoeira para estabelecer controle sobre a mesma e obrigar os mestres de capoeira a se filiarem e pagarem mensalidades para poder exercer sua profissão. Mais recentemente o Congresso Nacional Unitário de Capoeira (CNUC) assumiu este papel com a articulação do PL 31/09, seguindo a mesma tentativa de regulamentar para controlar a capoeira.
Passemos então à resolução. O que ela diz, afinal?
Em seu preâmbulo, afirma que a capoeira pode “desenvolver saúde, atividade física, aptidão física, qualidade de vida ativa, sendo atualmente, também, institucionalizada como prática esportiva regulamentada”. Aí está o ovo da serpente, a armadilha, o pé que tenta nos dar uma rasteira à traição. A resolução estabelece que
Art. 1 As Artes Marciais/Lutas e a Capoeira reconhecidas em suas dimensões históricas e socioculturais como manifestações artísticas e culturais, quando práticas de atividades físicas que se manifestam através de processos metódicos e regulares de caráter competitivo, institucionalizado, realizado conforme técnicas, habilidades e objetivos que lhes dão forma, significado e identidade, e exercícios físicos objetivando o condicionamento físico e promoção da saúde, são consideradas esportes para fins de enquadramento ao campo das atividades desenvolvidas e regulamentadas no País.
Art. 2 Na dimensão esportiva, Artes Marciais/Lutas e a Capoeira, quando se candidatarem visando à obtenção de apoios financeiros e logísticos, junto ao Ministério do Esporte, ou a outros órgãos públicos, estejam constituídas através de organizações legalizadas enquanto componentes da área do Esporte, tal como se institucionalizam as demais modalidades esportivas, a saber: Ligas, Federações e Confederações Esportivas.
Ou seja, a resolução não aponta nenhum caminho de financiamento e apoio à capoeira, como amplamente proclamado, mas apenas à sua faceta institucionalizada e regulamentada. Todos os recursos seriam destinados somente à tal “capoeira desportiva”, uma profunda desconhecida. Seria a “capoeira desportiva” um estilo de capoeira? Teria linhagens e mestres próprios? Toques de berimbaus e rituais? Não! Trata-se da tentativa de institucionalizar, padronizar, normatizar e regulamentar a capoeira para colocá-la em um ringue. Apenas quem se enquadrasse nesse formato teria direito a receber algum recurso, que viria através das federações e confederações! Seria interessante trazer aqui a fala do fundador da CBC, Sérgio Vieira, na audiência pública realizada em agosto de 2015 no Congresso Nacional: “A profissionalização dentro do sistema desportivo não é de mestre de capoeira, é de técnico desportivo de capoeira, é de treinador profissional de capoeira e de árbitro”. Ou seja, esse formato de capoeira a ser apoiado rompe frontalmente com nosso patrimônio imaterial brasileiro, descaracterizando a roda de capoeira (substituindo-a por rounds dentro do ringue) e excluindo o mestre de capoeira, que seria trocado por um técnico desportivo, com uma formação alienígena a essa cultura, possivelmente sob a tutela da Confederação. É assim que já acontece em Portugal, onde para se dar aula de capoeira é necessário fazer o curso de treinador de desporto.
Quais seriam as consequências para a capoeira a médio prazo? Sinistras!!!
Com o dinheiro colocado somente nessa nova “modalidade” de capoeira, muitos grupos, por necessidade de sobrevivência, passariam a se adaptar a esse formato, abandonando suas tradições e rituais em função do exigido pelo mercado esportivo. Na medida em que as referências de capoeira fossem os critérios puramente técnicos e objetivos, transmitidos pela TV como as carnificinas do UFC, toda sua tradição cultural, ritualidade, fundamentos, valores, seriam acessórios descartáveis.
Teríamos um destaque para determinados atletas, que passariam a ter com seu grupo e seu mestre (ou treinador) a mesma relação que o jogador de futebol tem com seu time. Ou seja, defende o brasão de quem comprar o passe e pagar mais, podendo mudar de time e beijar uma camisa nova a cada verão. Estes novos grupos seriam empresas a negociar o passe dos lutadores. Os referenciais de capoeira das novas gerações não seriam os antigos mestres, mas os novos campeões, garotos-propaganda de marcas de tênis, margarina e cerveja. E quem seriam estes atletas? Será que um jovem negro de uma periferia brasileira, que trabalha durante o dia, estuda à noite e se vira para treinar capoeira três vezes por semana, que vivencia sua cultura, vai pro samba e pro terreiro, teria condições de competir em pé de igualdade com um atleta “criado a danoninho”, patrocinado para treinar 8h por dia com uma equipe de profissionais do treinamento desportivo? E no âmbito internacional? As consequências podem ser ainda piores!!! O Brasil viria a perder de vez seu protagonismo na capoeira, na medida em que os atletas estrangeiros viessem a superar os brasileiros, e a vitória técnica fosse a única medida de referência nessa deturpação de uma ancestral arte afro-brasileira. Ou alguém ainda se lembra que o futebol é inglês, e se preocupa em ir à Inglaterra aprender alguma coisa sobre o futebol? A Federação Mundial de Capoeira, fundada no Azerbaijão e dirigida por estrangeiros, é quem controla os campeonatos mundiais. Precisa dizer mais alguma coisa?
Além do mais, esse dinheiro não estaria nas mãos dos capoeiristas, e sim das federações, que contam com uma ínfima representatividade hoje. Grande parte das federações têm donos, que se perpetuam no poder, não prestam contas à comunidade e contam com um percentual insignificante de filiados. Seria colocar a raposa pra tomar conta do galinheiro!
Outra questão a se atentar é que toda a linguagem utilizada pelo presidente do CONFEF remete às atribuições do profissional de educação física. Nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Educação Física, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação em 2004, se afirma que a Educação Física “tem como objeto de estudo e de aplicação o movimento humano, com foco nas diferentes formas e modalidades do exercício físico, da ginástica, do jogo, do esporte, da luta/arte marcial, da dança (...)”, ou seja, por mais que haja um acórdão garantindo aos capoeiristas praticarem e ensinarem sua arte sem interferência do CONFEF, o mesmo não se aplicaria à nova “capoeira desportiva”, uma vez que, juntamente com as artes marciais, seriam “consideradas esportes para fins de enquadramento ao campo das atividades desenvolvidas e regulamentadas no País”. É claro que o CONFEF não daria “ponto sem nó”, e está de olho neste potencial filão para sugar de canudinho o sangue dos trabalhadores da capoeira. No próprio site da entidade, em artigo intitulado “Polêmica do Projeto de Lei 7370/2002”, a entidade pergunta:
“AS ARTES MARCIAIS E A CAPOEIRA NÃO SÃO ESPORTES? Estas atividades estão sob o estatuto das Confederações e Federações Esportivas, sendo inclusive reconhecidas pelo Comitê Olímpico Brasileiro. (…) É verdade que elas também podem ser reconhecidas como expressão cultural dos povos orientais e assim serem praticadas em nosso país. Nesse caso, quando dinamizadas enquanto cultura e/ou arte não são fiscalizadas por nenhuma entidade. No entanto, enquanto modalidades esportivas devem ser fiscalizadas para que os princípios técnicos, éticos e morais do desporto, além da segurança dos praticantes, sejam assegurados. (...) A Capoeira, além de modalidade reconhecida pelo COB, consta do calendário esportivo de inúmeros estados brasileiros e das Olimpíadas Estudantis, sendo, portanto, esporte”.
Na mesma audiência pública anteriormente citada, a representante do Ministério dos Esportes, a Srª Andrea Ewerton, desmascarou as falácias dos capitães do mato afirmando que “enquanto Ministério do Esporte quero dizer que não é verdadeiro a necessidade da institucionalização, ou organização, para ter acesso ao recurso público”. De fato, o artigo 7 da Lei Pelé (9615/98) afirma que:
Os recursos do Ministério do Esporte terão a seguinte destinação:
I - desporto educacional;
II - desporto de rendimento, nos casos de participação de entidades nacionais de administração do desporto em competições internacionais, bem como as competições brasileiras dos desportos de criação nacional;
III - desporto de criação nacional;
Ou seja, essa concepção de esporte como de alto rendimento é apenas uma das perspectivas possíveis. Os antigos mestres sempre falaram da capoeira como esporte, e o Mestre Pastinha fundou o Centro Esportivo de Capoeira Angola. Mas o que eles entendiam como esporte é a capoeira tal como ela é. E o Ministério dos Esportes pode dar sua contribuição financeira à capoeira sem que seja necessária regulamentá-la e enquadrá-la em um formato alienígena. Isso somente interessa aos que querem aprisionar a capoeira para montar nas costas de seus praticantes e se apropriar dos seus dividendos, ou seja, sistema CREF/CONFEF e federações.
Apesar do auê criado pela notícia, datada de 16/02/2016, a resolução ainda não foi publicada no Diário Oficial, não tendo portanto validade. Capoeiristas de todo o Brasil vêm se manifestando contra essa resolução. A presidenta da Fundação Cultural Palmares, Cida Abreu, afirmou que “uma proposta de profissionalização ou de conceituação da capoeira como modalidade esportiva põe em risco toda simbologia, referência e propriedade histórica desta matriz cultural ancestral”. O Fórum de Capoeira de Salvador, o Coletivo Capoeira e Militância e a Rede Nacional de Ação pela Capoeira vêm se mobilizando contra a resolução, luta apoiada também por diversos setores sociais.
A Rede organizou um abaixo-assinado presente neste endereço:
O Colegiado Setorial de Cultura Afrobrasileira elaborou uma carta ao ministro, que está sendo assinada por pessoas e entidades:
Muitos se somam a esta luta, mostrando que a batalha não está perdida. Capoeiristas de todo o Brasil continuarão em estado de mobilização permanente para que a resolução não seja publicada e os capitães do mato não se apropriem da capoeira. Por uma capoeira livre e democrática!
GOLPE, SÓ DE CAPOEIRA!!!

Paulo Magalhães (Treinel Sem Terra) é jornalista e mestre em ciências sociais, autor do livro “Jogo de Discursos: A disputa por hegemonia na tradição da capoeira angola baiana”. Coordenador do Coletivo Ginga de Angola, membro da Associação Brasileira de Capoeira Angola, do Fórum de Capoeira de Salvador, do Coletivo Capoeira e Militância e da Rede Nacional de Ação pela Capoeira.

* Na foto divulgada pelo CONFEF a “marmotagem” é escancarada! Além da branquitude explícita, o suposto “mestre” (seria um treinador de desporto?) segura errado um berimbau desarmado e de cabeça pra baixo. Vergonhoso e lamentável!!!
www.sositaguare.blogspot.com

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